quinta-feira, novembro 27, 2003

Galileu apagou a Igreja da Constituição Europeia

Quando em 1610 Galileu Galilei apontou o seu telescópio para o céu estava longe de imaginar o que essa sua ousadia iria desencadear. Em 1633 o papa Urbano VIII foi categórico ao proibir o «Diálogo» de Galileu condenando-o simultaneamente a abjuração pública e formal e a detenção por período indefinido. A 22 de Junho do mesmo ano, Galileu bastante doente, ajoelhou-se perante o tribunal do Santo Ofício e proferiu obedientemente o seguinte discurso:

Eu, Galileu, filho do falecido Vincenzio Galilei, (…) depois de me ter sido legalmente feita por este Santo Ofício uma injunção no sentido de que deveria abandonar por completo a falsa opinião de que o Sol é o centro do Mundo e imóvel, e de que a Terra não é o centro do Mundo e se move, e de que não deveria aceitar, defender ou ensinar, de qualquer modo, verbalmente ou por escrito, a dita falsa doutrina, e depois de me ter sido notificado que a dita doutrina era contrária à Sagrada Escritura, escrevi e imprimi um livro em que tratava essa nova doutrina já condenada e aduzia argumentos a seu favor sem apresentar nenhuma solução para eles, fui considerado veementemente suspeito de heresia, ou seja, de ter aceitado e acreditado que o Sol é o centro do Mundo e imóvel e que a Terra não é o centro e se move.
Portanto, desejando tirar do espírito de Vossas Eminências, e do de todos os fiéis cristãos, essa veemente suspeita justamente concebida contra mim, com coração sincero e fé singela abjuro, maldigo e abomino os supraditos erros e heresias e também todos os outros erros, erros e seitas sejam quais forem, contrários à Santa Igreja, e juro que de futuro nunca mais voltarei a dizer ou a afirmar verbalmente ou por escrito alguma coisa capaz de causar similar suspeita contra mim.


Só muito recentemente a Igreja pediu desculpa por esta arrogante, ignorante e atroz condenação de Galileu Galilei. Esta é a prova de que no essencial a Igreja pouco mudou desde o século XVII. Se não fossem individualidades como Galileu que deram corpo ao movimento renascentista e ainda hoje andaríamos por caminhos bem longe dos que são trilhados pelos países que constituem a União Europeia.

O professor Carlos Amaral Dias fundamenta muito bem esta divergência de percursos quando refere que a pior coisa que aconteceu à Europa foram as trevas, altura em que o tempo era organizado em função do fim dos tempos. Indo mais longe ao referir que a Europa é muito mais herdeira do iluminismo e de Kant do que do cristianismo. Eu sugeriria o renascimento como base da génese da Europa dos nossos dias e o iluminismo e a industrialização como seus subprodutos directos. Para mais Portugal foi um dos países que teve um papel fulcral no movimento renascentista.

Existe uma última questão que torna obsoleta a pretensão de incluir uma menção ao cristianismo na Constituição Europeia. Actualmente na UE existem mais de 10 milhões de muçulmanos e foram assinados há alguns meses acordos para iniciar processos de negociação com países como a Croácia, a Bósnia-Herzegovina, a Servia e Montenegro e a Albânia, tudo países em que existem fortes comunidades muçulmanas. Assim, fazer menção ao cristianismo ou à tradição judaico-cristã é estar claramente a incorrer numa manifestaçao de má fé e de falta de respeito para futuros aderentes, cujo objectivo único é o de «marcar território» a estas futuras adesões e especialmente a uma hipotética adesão da Turquia.

Julgo que a actual versão da Constituição (pag. 1) que enuncia as heranças da Europa de uma forma mais genérica (refere apenas herança religiosa) é bem mais razoável do que os devaneios religiosos dos governos polaco, espanhol e português que parecem andar com saudades do tempo em que o Vaticano mandava na Europa. Eis o parágrafo da polémica:

Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, cujos valores, ainda presentes no seu património, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis (...)

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