domingo, março 07, 2004

Equívocos sobre a guerra, os EUA, a Europa e o futuro

O texto do Nuno Mota Pinto no Mar Salgado e de Pacheco Pereira no Público sobre o clima de guerra merecem ser comentados porque fazem eco dos principais equívocos que fazem do mundo de hoje um lugar mais perigoso.

1- Acima de tudo, a questão dos EUA estarem ou não estarem em guerra está intimamente ligada à filosofia de Fukuyama descrita preto no branco na sua obra "O Fim da História e o Último Homem", filosofia essa que é seguida à risca por muitas das principais figuras que fazem parte da actual administração norte-americana e que diz o seguinte:

Uma democracia liberal que pudesse travar uma guerra rápida e decisiva, mais ou menos em todas as gerações, para defender a sua liberdade e independência seria muito mais saudável e realizada do que aquela que apenas conhecesse a paz contínua.

Mais explícito que isto é impossível. As causas (ou desculpas) para iniciar uma guerra poderão ser mais ou menos legítimas, mas em traços gerais seguem a ideia acima descrita.

2- Na guerra contra o terrorismo os EUA têm acumulado atitudes ambíguas. Dá a sensação que os EUA querem combater os terroristas do 11 de Setembro, mas não todos. Não os terroristas dos países que consideram como aliados estratégicos. Senão vejamos:

a) Como já aqui referi os EUA antes do 11 de Setembro gastaram uma boa parte das suas energias a fazer espionagem industrial à Europa, como o revela este relatório do programa ECHELON que nunca foi desmentido pelos EUA. Porque é que durante esse tempo os EUA não gastaram a mesma energia a espiar a Al-Qaeda, a Arábia Saudita e o Paquistão?
b) Porque é que os EUA apoiaram movimentos fundamentalistas no Uzbequistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Afeganistão e Paquistão? Porque é que apoiaram movimentos sanguinários como o FIS da Argélia, os talibãs de Kandahar a Cabul, as correntes wahhabitas dos países árabes, os grupos Chechenos mais radicais? E apoiaram ainda os movimentos sunitas mais radicais contra a revolução xiita no Irão (parece-me que li algo em defesa dos xiitas). E que dizer do recrutamento de Ramzi Yousef pela CIA, o futuro cérebro do atentado contra o World Trade Center (WTC)? Ou do visto atribuído a Omar Raman na embaixada dos EUA em Cartum, este que já tinha estado implicado na morte de Sadat. E que dizer de Azzam? Um dos arquitectos dos atentados de 1993 e 2001 ao WTC, que por mais do que uma vez em Oklahoma City participou em cimeiras internacionais de islamismo radical.
c) Actualmente, filiais de instituições financeiras Americanas e Inglesas (como o City Bank ou a HSBC) no Dubai servem de tráfico para tudo o que há de mais podre no mundo. Entre os seus quadros contam-se membros da Al-Qaeda com excelentes qualificações académicas em economia e finanças. Alguns desses quadros juntamente com alguns clientes priveligiados passaram à categoria de milionários no dia 12 de Setembro, depois de transacções financeiras bem sucedidas tirando partido do seu conhecimento prévio da ocorrência do atentado de 11 de Setembro. Quando o FBI, com três-quinze-dias de atraso manda congelar a conta do Sr. Mohammed, nome cuja grafia é adaptada consoante o país para Mouhamad, Ahmad, Ahmed, etc, o divertimento foi absoluto destes seguidores de Ben Laden que se escondem atrás de identidades e pseudónimos infindáveis. Vão congelar a conta dos 30 mil Mohammeds que têm conta no Dubai? E se o FBI se enganou numa letra e se era Mohammad? O caso é cómico, mas não é para rir. Como é? Vamos continuar placidamente a negociar no Dubai como se nada tivesse acontecido? Como se fosse uma praça financeira séria?
d) E que dizer das alianças perversas dos EUA? Que dizer do aliado Saudita? Por exemplo, podemos dizer que os EUA têm como aliado a pior ditadura do planeta. Ou podemos ainda dizer que Sauditas muito próximos do poder estão bastante interessados numa tecnologia de outro aliado dos EUA, o Paquistão. E o que dizer do aliado Paquistanês, esse aliado que possui tecnologia para fabricar a bomba atómica? Enquanto o Paquistão participava na coligação que libertou o Afeganistão, elementos ligados aos seus serviços secretos iam fazendo atentados sobre cidadãos estrangeiros presentes no Paquistão. Daniel Pearl, jornalista e cidadão americano, foi morto por um agente secreto paquistanês enquanto Musharaf apertava a mão a Bush em Washington. E foi morto porque era americano, um americano de origem judaica.

3- Pacheco Pereira refere frequentemente que as transmissões futebolísticas exageradas só servem para excitar a população. E as guerras e os conflitos exagerados, não excitam a população? E as imagens de Bush a exibir-se no Iraque de peru de plástico na mão (já nem refiro as imagens de feridos e mortos) transmitidas nas televisões em cafés a abarrotar de homens na Síria, na Jordânia, no Qatar, no Iemen, no Egipto, em Marrocos, não excitam? Claro que excitam! E é deste modo que desde que começou a intervenção no Iraque, os movimentos mais radicais multiplicaram os seus novos recrutas como nunca o tinham feito na história.

4- Quanto à Europa, julgo que não se deve perder neste lodo que só tem tornado o mundo mais perigoso. A frase de Schröder no final de 2002, embora algo populista, em que afirma que a Alemanha não entrará em aventuras no Iraque e que o mundo se deveria preocupar mais com o clima do nosso planeta, vista agora à distância de um ano e meio, não poderia ser mais acertada. O maior desafio que o nosso planeta enfrenta nos próximos anos é o da falta de água potável e o risco cada vez mais eminente do aquecimento global provocado pelo homem. Enquanto andamos a brincar aos terrorismos arriscamo-nos a ficar sem planeta para viver. É por isso que as próximas eleições europeias são muito importantes para que surja um novo Parlamento que dê prioridade a estas questões. No entanto, não acho que a questão do fundamentalismo seja uma questão menor. Penso que sobretudo os países que contribuíram para excitar o mundo deveriam afastar-se, porque o que quer que façam agora só vai contribuir para o excitar ainda mais. A solução poderá passar pela mediação de países que mantiveram até hoje uma postura afastada do problema. Alguns desses países são europeus.

Eu temo que uma bela manhã possamos acordar com uma notícia péssima, em que algo de terrível aconteceu em Israel, algo que matará tanto Israelitas como Palestinianos, algo cujo sopro impiedoso libertado pelos seus elementos pesados desenhe um cogumelo de morte no céu. Nesse dia não venham dizer que a culpa é da Europa. O melhor é não dizerem mesmo nada.

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